O inverno rugia uma promessa de tempestade. Nuvens de chumbo dançavam no céu noturno, ditando a fúria dos ventos gelados que castigavam a cidade. Tímidos trovões já começavam a mostrar as suas garras, estremecendo o céu pesado com o seu mau humor. A chuva estava próxima, eles conseguiam sentir isso na eletricidade fria que invadia o ar.
Dante e Beatriz estavam perdidos pela cidade. Perdidos um do outros e de si mesmos. O calor do espaço entre os seus corpos dissipara-se em um tempo distante, abrindo espaço ao frio que já lhes vitrificava o sangue do coração.
Ele lamentava o momento em que a deixou ir, sofria pelo instante em que não fora capaz de ser suficiente, de preencher o vazio que uivava naquela alma insondável. Ela lamentava ter partido, amargava pelo seu estado líquido, impossível de ser contido ou de pertencer. Mas essa era a sua natureza, ele não a amaria se fosse diferente. As suas almas queimavam, e o gelo da noite era o seu único consolo.
Dante caminhava sem rumo, pedindo ao céu que desabasse, que o dissolvesse em água escura que se perderia no rio, sem memória, sem passado, sem dor. Agradecia o frio que invadia a sua pele, a sua carne, que lhe penetrava os ossos como agulhas de inverno. O beijo úmido do vento gelado anestesiava a sua angústia, mas não era suficiente. Em desespero, arrancou a sua camisa e lançou-a ao vento. Dante precisava do frio, do gelo, queria ser o próprio vento do norte.
Os olhos da cidade o observavam com indiferença, e Dante sentia-se um fantasma pálido que vagueava sem destino. Deu por si na ponte, aquela ponte. Caminhou pelo estreio passeio de pedra gasta sem olhar para baixo. Quando os passos foram suficientes, parou, encostou-se ao guarda-corpo e olhou para baixo. Havia ali um rio. E uma memória.
Não longe o suficiente, Beatriz perdia-se pelos caminhos cegos da cidade, pelas suas margens noturnas. Aquele labirinto pelo qual tentava perder-se era seu velho conhecido, o lugar onde despejara lágrimas, vômito, suor, paixões envenenadas. Os sons, os cheiros, a memória de cada pedra pisada e a sombra luminosa daquela ponte que flutuava sobre o rio, tudo era tão familiar quanto as cicatrizes na sua pele.
Perdendo-se, enfim, Beatriz acabou em um bar sem nome, um inferno esquecido da noite, onde almas de fumaça e brasa salivavam pela sua presença. Sentiu vontade de sair correndo, de gritar até que a alma lhe doesse. Mas deixou-se ficar. Na vertigem da angústia, inebriada pelo licor amargo que embebia o seu coração, Beatriz lembrou-se da voz de Dante alvejando-a à queima roupa com aquelas três palavras...
“Seja só minha.”
Por eternos três segundos Beatriz parou-se naqueles olhos de azul tremeluzente. Imploravam um sim.
“Não”, ela disse.
O azul de Dante escorreu por sua face pálida. Seus lábios murmuraram palavras vazias que Beatriz não conseguia preencher. Naquele exato momento, os seus corações estavam perto demais um do outro. Perigosamente perto. Mas os seus desejos os afastavam como dois ímãs que se repeliam em prantos.
Ela ainda assim o amava.
Ele, sem ela não viveria.
Ela não pensou.
Ele pensou que não.
Antes que a mão quente de Dante a pudesse agarrar, o seu salto alto já ganhara a calçada sem olhar para trás. Beatriz aventurava-se cega pela rua fria, de coração em sangue, mas livre.
E ali ela estava, em um bar sujo, cercada de vultos sem face. Aceitou o primeiro copo posto à sua frente, mergulhou naquele vinho barato, e no coração descartável que o oferecera.
Sozinho na noite interminável de inverno, segredando abandonos ao vento que o gelava em sussurros, Dante fitava a água escura que cintilava com as luzes da cidade. Os carros velozes passavam indiferentes, rugindo tão alto quanto o seu coração. Na sua pele ainda estava impregnado o perfume de Beatriz, como a lembrança de uma queimadura. Dante a conhecia bem. Ela era livre como aquele rio passava lá em baixo. De todos e de ninguém. Sua dor o convidou a flertar com a morte, que o escolhera como seu próximo amante. Aquele guarda-corpo apenas guardava a sua hesitação.
“Beatriz...” segredou ele ao vento.
Nos braços de um estranho, que mergulhava em seus lábios rubros, Beatriz sentiu uma vertigem fria. Nos fundo dos seus olhos, olhos azuis se acenderam. Aquele bafo quente, incógnito em álcool, segredava-lhe obscenidades sedutoras que a repugnavam. Uma ânsia de vômito frustrou um beijo forçado, e com um empurrão se desfez daquele abraço libertino. Tropeçando em fuga pelo meio dos habitantes de meia luz, ela encontrou o ar gelado da rua. Uma facada fria penetrou sua intuição. Beatriz logo soube onde ele estaria.
“Dante...” ela murmurou à penumbra suja daquela rua.
Dante caminhava languidamente pelo limite do precipício cintilante. Equilibrando-se no guarda-corpo da ponte, deixou cair os seus sapatos como convite à coragem. Seus pés estavam gelados. Não os sentia.
Beatriz corria pelas ruas decadentes, onde olhos inebriados de absinto e erva observavam seu desespero com indiferença. Gritava o nome de Dante, pedindo ao vento que levasse a sua mensagem. Mas o vento do inverno apenas conhecia a linguagem da morte e do desencanto.
Ela lamentava o inevitável “não”.
Ele lamentava o "não-sim”.
Dante olhava o lugar onde tudo ia acabar, enquanto Beatriz corria para onde tudo havia começado. Lembravam-se daquela noite, naquela mesma ponte, onde ele a havia feito desistir da queda, caindo de amores por ela. Beatriz parecia um pássaro de asa quebrada, com cabelos de noite, prestes a mergulhar em seu último voo, salva por aquele homem com olhos de céu, que a acolhera no calor daquelas mãos tão quentes.
Ele lhe devolveu a vida.
Ela tornara-se tudo na vida dele.
Ele estava entregue.
Mas ela jamais se entregaria.
Como que em uma maldição, a chuva despencou do céu como uma torrente de chumbo frio. Dante gelava até os ossos. A Beatriz gelava o coração que antes fora aquecido pelo calor daquelas mãos. Ela o viu ao longe. Amaldiçoava o momento da sua escolha, o momento em que caíra do lado errado daquela ponte. Não deveria ter caído naquelas mãos quentes, nos braços igualmente quentes, onde palpitava aquele coração que antes fora tão tépido e que agora invernava sob aquela chuva de gelo.
Dante sentiu a sua chegada. Seus olhos azuis eram um abismo de escuridão. Ele deu um passo em frente, pisando o vazio. Seu corpo balançava-se ao vento e ela viu cada músculo, cada célula, cada átomo entregar-se ao fim. Então veio o outro passo, o último.
Ela gritou.
Ele sorriu.
Ela o viu cair.
Ao cair ele a viu.
Beatriz chegou demasiado tarde.
Dante partiu cedo demais.
Lindíssimo, Lucas!!! Um texto singelo, poético, mas denso, como tudo o que você escreve!! Seus textos são fortes nas metáforas e na delicadeza dos gestos. Amo sua arte. Você é um escritor de grande sensibilidade! Parabéns!!!
ResponderExcluirObrigado, Barbs! Obrigado sempre! *___*
ExcluirBelíssimo texto. Você é um craque...Lucas
ResponderExcluirObrigado, João! ;)
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