10.12.09

o podre poder de hércules


Nota: Este pequeno texto nasceu de um comentário que fiz no blog das Avassaladoras Rio.

Os podres poderes de Hércules são muito perigosos. Se formos pensar com calma e paciência, logo os descobriremos como a fonte do Mal Maior que mastiga a nossa sociedade mole; devassada taba global. Podemos chama-la antes de um Olimpo com colunas pichadas de esperteza maquiavélica, cobiça infeliz e uma vergonha nunca clamada. Um Olimpozinho infestado de Hércules com fomes vigaristas.

Imaginemos todo o processo de corrosão de sociedades e almas como uma piramidezinha nefasta. Lá de cima, o poderoso rouba, compra e se vende. Trai. Um pouco mais embaixo, mas não muito, o menos poderoso o imita como um macaco prentensiosamente esperto, seguindo a tradição em mandala descendente. Enfim, o ácido chega ao Miserável Mortal, a base esmagada da pesada pirâmide, que, por falta de sorte ou karma infeliz, nasceu preso a esse jardim devassado, onde nem mais as Espérides se preocupam em tomar conta. A maçã dourada, facilmente roubada por um Hércules corrupto, apodreceu e, nem por sonhos, o Miserável Mortal viu sequer o caroço.

Esses Hércules, entre os outros deuses e semideuses, prostados no Olimpo decadente, carecas, gordos, e com as vestes empalhadas em patacas, se empanturram do néctar podre, feito com maçãs douradas igualmente podres. Acredita-se que, ofuscados pelo brilho dourado, muitos perdem o sensato paladar, tornando-se incapazes de se repugnar pela podridão deglutida.

A cada gole, a miséria desce em chuva fedorenta sobre o mundo triste que se condena abaixo das nuvens escuras do Olimpo depravado. Assim, certo é que, cedo de mais ou tarde de menos, o Miserável Mortal sempre morre de fome, tiro ou desesperança. Em desespero visceral, o morto de fome e de espírito alimenta-se na carne dos outros mortais miseráveis, companheiros de má fortuna, sem nunca saber o gosto ou o cheiro do gomo de maçã dourada, que é também seu por direito. Também perdeu o paladar da razão.

Bem dizia a boa e velha Parca, enxerida e linguaruda, que tudo via e que dizia: existe o ladrãozinho mortal, miserável e infeliz, pois é filho legítimo, e não bastardo, do Hércules bandido e cara de pau, intocável e imortal, que come todas as maçãs de ouro e vende os caroços no mercado negro da impunidade.

9.12.09

aurelio e o criador


Aurelio nasceu sem avisar.

Não houve gravidez, choro ou mesmo dor.

Ele nasceu de um ar diferente.

Esse mesmo ar existia em um espaço mudo, embora interminável e confuso, que existia dentro da mente de seu criador. Lá, desde sempre, Aurelio vivia silenciosamente, escrevendo suas pequenas estórias nas paredes cinzentas e moles do quarto onde morava.

O criador não sabia de Aurelio. Afinal, se a criatura era muda, jamais se manifestaria da maneira egoísta que o Mundo dita. Nas telas dos sonhos do seu confinador, Aurelio se expressava, levando os seus desenhos como miragens vivas e falantes.

Confinado continuava. Ignorado, existia.

Na casa cinzenta e elétrica, lá ficava ele, quieto, pintando... Olhava o mundo através dos olhos curiosos e míopes do criador que o carregava sem saber.
E havia o ar que, de quando em vez, se irritava em uma longa tempestade dentro da massa cinzenta. Nesses dias, Aurelio corria como louco e tentava sair pelos ouvidos; pelo nariz, talvez. A boca já estava povoada pelas palavras e estas eram muito hostis e medonhas. Os dentes afiados o assustavam...

Décadas se passaram e Aurelio já se resignava ao nada. De quando em vez pintava com mais força. Quem sabe seria notado?

Com a Indiferença noivou.

O ar da mente, que raramente se chocava com as nuvens que cobrem o céu da alma, estranhamante se mostrou inquieto. Sem aviso, choveram lágrimas salgadas e mesmo trovoadas de ira ribombaram. Toda a casa cinzenta tremia nas bases mas não desmoronava. Nem de longe. Indiferentemente ansioso, Aurelio não tremia. Nem de perto.

Certo dia, em uma tarde vazia, Aurelio finalmente entendeu para onde ia. Ele descobriu que a saída existia. As suas estórias seriam sua mais valia. E então, numa vertigem de alegria, pelos dedos do seu criador, Aurelio finalmente nascia.

7.12.09

onde tudo nasce

Um nascimento, seja do que for, nunca é uma coisa fácil.

A criatura é frágil, vulnerável e facilmente morre. É exatamente o caso de um projeto, uma aventura, um desafio que pode morrer nas suas primeiras semanas. O tempo foi curto, o esforço desperdiçado, os sonhos trocados por outra coisa qualquer. É exatamente isso o que nós, férreos pessimistas, aceitamos quando começamos a esboçar as primeiras palvaras daquilo que sonhamos como uma obra completa, um feito realizado, desafios quebrados, um oceano atravessado.

Pois é.

Pessimista, sem hipótese de fuga ou regeneração, o escritor de sonhos insistiu em nascer e clamar o seu direito de existir, nesse vácuo perdido em qualquer lugar imaginário. Ele escreverá os seus sonhos e os sonhos de nós todos. Leremos. Talvez. Ele insistirá em desenhar as suas palavras cor de terra.

E propôs-se a um desafio.

Enquanto a força dure e o amor não acabe, o escritor de sonhos se arrisca a escrever a sua pequena obra, seus pequenos contos e memórias. No fundo da sua imaginação desenhou-se o hierofante, a história de um jovem bastante comum, como todos os outros na multidão agitada, que descobre em si um dom muito especial, embora não necessariamente feliz.

A saga não está completamente desenhada. Apenas pequenas borboletas brancas volitam dentro de sua imaginação. O verdadeiro desafio é construir essa saga ao logo do tempo, de dias, semanas, quem sabe. Esse virtual recanto será as páginas do seu livro e os olhos escondidos, os seus leitores. Os capítulos nascerão com o tempo, as semanas, os dias, os anos. Outras estórias virão também.

Até onde irá o escritor de sonhos? Ninguém pode advinhar ou sequer sonhar.

Confiaremos no tempo e na sorte de, mais cedo ou mais tarde, nos encontrarmos nesse lugar imaginário, onde tudo nasce.