29.1.13

prólogo do nada



Sol. Sal. Seca. Essas eram as três palavras que ela mais odiava. Pobre habitante daquela terra inóspita, esse ódio visceral ser-lhe-ia perdoado pelos deuses, eventualmente. Era isso que carregava na mente a cada passo que dava; passos descalços sobre a terra ardente, com sede de chuva.

Carregava na cabeça uma lata enferrujada, pesada de água turva e salobra, arrancada de uma fonte quase seca. Com a força de um frágil titã, ela caminhava por aquela estrada sem sombra, sem margem, sem pena. Jamais vacilava no seu passo, cansado, mas firme. Ele estava à sua espera, bem o sabia. Teria sede e fome, com certeza. Naquele horizonte turvo de poeira, ela via com clareza o seu menino à sua espera.

- Dai-me forças para chegar... – murmurava baixinho, como uma prece, sempre que as forças lhe ameaçavam faltar.


Nos bolsos de seu vestido branco de chita coçada, trazia algumas tâmaras e amêndoas que havia colhido em umas poucas árvores que ainda desafiavam aquele deserto inclemente. Seria o complemento singelo de mais um jantar pobre, regado à água e farinha.

Aquela vida lhe doía. Uma vida sem esperança ou vislumbre de um futuro melhor. Estavam no meio do nada. Sozinhos em um desterro árido e salgado. Há sete anos que praticamente não chovia. As poucas nuvens que passeavam sobre o céu azul simplesmente negavam-se a chover. Sentia como se aquilo fosse uma troça celeste, um capricho divino, um castigo mesquinho pelos poucos pecados que alguma vez cometera. Se alguma vez chovia, era bem longe de sua casa, de sua horta estéril. Já havia mudado de terra várias vezes em busca de uma sorte melhor, mas as chuvas sempre lhe fugiam. Com o tempo, desistiu. 

Lembrava-se da época em que morava da vila, quando mais jovem. Lá, apesar das inclemências do céu, havia um riacho que jamais secava. A água era cristalina e doce e, à sua margem, a vida brotava da terra sem esforço, como que por milagre. Lembrava-se do cheiro da primavera, quando ela vinha, trazendo o aroma das flores de laranjeira. O cheiro do pão e do alecrim ainda lhe visitava os pensamentos.

Mas nada daquilo lhe pertencia mais. 

De lembranças não se vive. De passado o mundo não se move. A mim só me resta esta terra seca e esta maldição que caiu sobre mim. Maldição que se estende ao meu filho que nasceu inocente. Quem me dera ser tão seca e estéril como essa terra. Assim, sofreria sozinha. Eu, e apenas eu. Só.

A sombra esquelética de uma oliveira que definhava anunciou que estava próxima de casa. Com sorte, chegaria antes do anoitecer.

. . .

Naquele fim de tarde o Sol pareceu-lhe ter pressa para se por. Não sabia se seria ilusão da sua cabeça, que sofrera sob o calor daquele verão eterno, mas podia jurar que o astro rei havia despencado no horizonte. Possivelmente estaria morto de vergonha da sua crueldade.

As sombras da noite finalmente chegaram, e com elas o vento noturno que se vitrificava em gelo. Sentiu os primeiros sopros frios como um bálsamo na sua face ressequida e gasta, mas logo se transformaram em dolorosas agulhadas de inverno. Ela sabia que o sal daquele deserto já se havia afundado em todas as suas camadas de pele,  em suas entranhas, em seu coração que congelava em uma pedra salgada. Já não mais conhecia aquela doçura que um dia tivera. Apenas lhe restara o suficiente para dispensar ao seu menino.

O céu já estava tingido de azul cobalto quando vislumbrou de longe o cintilar de sua casa. A cerca de madeira velha e podre trançada parecia dançar com a luz da fogueira que já estava acesa no terreiro. O cheiro de madeira queimada era um perfume delicioso para ela. Era sinal que tinham fogo para se aquecer e lhes iluminar a noite. Sinal que tinham qualquer coisinha para assar e comer. Era pouco, mas era bom. Já haviam passado muitas noites com frio e com fome. A pobre mãe fez uma prece em seu coração, agradecendo.

No terreiro, em meio à luz do fogo e as sombras, ela o viu, saltitando para lá e para cá com suas perninhas magras, brincando com a sua espada de madeira. O soldado franzino e branco como a lua parecia lutar contra um exército imaginário, escondido naquelas sombras dançantes. A mãe sorriu. Viu então que, para além de acender a fogueira, sozinho e a tempo, o menino havia consertado parte da cerca que caiu com o vento, pendurado a carne salgada para secar e, pelo cheiro, o inhame já estava dentro das brasas. Daquele caminho escuro ela sorria para o seu homenzinho. Já estava tão crescido...

Cansada, pousou a lata pesada e expirou aliviada. Havia chegado. Seu coração estava em paz. Então, dos seus lábios saiu o som mais maravilhoso que conhecia...

- Filho!


{ ... }



2 comentários:

  1. Que conto lindo, querido!

    São nesses pequenos detalhes ou momentos que a vida se faz muito maior do que aparentemente é, apesar de tudo...

    Encantador, poético e uma delícia de ler.

    Beijinhos e ótimo fim de semana.

    Ps: Desculpe-me a demora em vir ler.As vezes me falta tempo para tudo que quero fazer.

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