Abel...
Abel era um jovem mago, egoísta, vaidoso e de má raça, que morava sozinho no céu. Não porque o azul fosse a sua cor preferida, que invejasse as nuvens ou simplesmente quisesse estar acima da chuva... A verdade é que Abel, no alto de sua arrogância, achava-se tão magnífico como o Sol e belo como a Lua e, sendo assim, resolveu invadir-lhes a casa. Foi então que certo dia, sem escrúpulos ou humildade de pedir licença, fez de uma nuvem grande e espessa o seu castelo. Ao céu roubou um punhado de estrelas para iluminar as suas noites e lhe guiar o caminho quando resolvia viajar pelo firmamento noturno observando aquelas criaturinhas feias e grosseiras que moravam lá em baixo.
Assim, ao longo dos tempos, Abel vagueou pelo azul e pelas estrelas, observando silenciosamente os humanos que ele tanto ridicularizava pela ignorância. Confundido com cometas, deuses e naves extraterrestres, ele cruzava os céus sem pudores de ser visto. E olhava os Humanos com desprezo... Não era mais um deles. Subiu na vida, literalmente.
Morava no céu. O
seu céu.
Lá em cima, o jovem mago guardava só para si os segredos preciosos daquele Mundo e de todos os outros que as estrelas fofoqueiras lhe sussuravam. Nem pensar em partilhá-los com os trogloditas lá de baixo. Nas suas viagens celestes sobre os continentes, Abel tirava prazer da miséria dos povos terrestres. Ria-se que se engasgava ao vê-los consumirem-se uns aos outros, divertia-se com a maneira estúpida como se envenenavam a si mesmos nas suas vaidades e ganâncias. Uma vez ou outra fez-se passar por um deus qualquer para semear a carnificina e o medo. O tempo passou e Abel então reparou que já nem era necessária a sua intervenção para inflamar o caos. Nem quisera acreditar em como o tempo os tornara tão estúpidos. Assistiu-os assassinar florestas, mares, rios, o seu prórpio ar, a sua própria gente. Bateu palmas ao vê-los dividir-se em religiões, tribos, países, partidos políticos... Abel até apostou com uma estrela cadente quanto tempo aquela praga de
homo sapiens sapiens iria durar.
Não tardou para que seu desdém se transformasse em antipatia pessoal, quando certa vez quase foi atropelado por um foguete. Lá em cima, Abel amargou em sua raiva. Aqueles primatas estavam chegando perto demais! Quando aquela fumaça podre que fermentava lá com eles começou a chegar às suas portas, o mago eremita começou a observá-los com desconfiança e medo. Afinal, eles eram realmente capazes de ser perigosos. Até lá em cima.
Aquilo caiu-lhe como um insulto.
E então houve o segundo foguete. O terceiro, o quarto, o centésimo oitavo... Vieram os aviões, que se multiplicaram como um praga de gafanhotos. Em menos de nada, o território de Abel, antes tão azul, foi invadido por aquela gangrena suja e barulhenta que se espalhava lá em baixo.
Em ataques de fúria por já não conseguir dormir com o barulho de milhares de turbinas que cruzavam sua casa sem cessar, Abel lançava pragas e maldições que se manifestavam em um sem número de catástrofes e flagelos. Tufões, tempestades, raios e trovões, todos eles tinham a sua mão. Do sofrimento dos terrestres, o mago celeste tirava a sua doce revanche. Tornou-se implacável na sua rixa com seus vizinhos de baixo. Praga após praga, aquela rapsódia apocalíptica por ele criada saiu de seu controle.
Como se ele se importasse...
Nos dias em que estava especialmente azedo, Abel derrubava com um peteleco qualquer avião que lhe passasse, assim, mais perto... Mirava-os às cidades, mas estas estavam sempre cobertas pela névoa pastosa de sujeira, o que lhe arruinava a pontaria. Como se não lhe bastasse, começou a sabotar espaçonaves e enlouquecer o ciclo das estações. Cozinhava chuvas ácidas durante semanas, para as despejar sem pena.
Aos poucos, Abel, cego de fúria mesquinha, começou a enlouquecer.
E então que certo dia, enlouquecido de raiva com um foguete que lhe desfez a casa, Abel armou-se de tudo que tinha para o espatifar na terra ele mesmo. Ao correr que nem um relâmpago, quase alcançando sua vítima, Abel descuidou-se e caiu por um dos buracos na camada de ozônio.
Dizem que para baixo todos os santos ajudam, pois, sem dúvida, eles fizeram questão de ajudar. Abel despencou do céu como um Ícaro meteórico e nem suas mágicas lhe valeram, porque, assim como os santos, a gravidade também o detestava.
E caiu no mar da costa do Japão.
O corpo cadente de Abel alvejou as entranhas do mar como uma bala perdida. A terra tremeu, o céu mudou de cor e uma onda colossal levantou-se furiosa contra a costa. Foi o seu derradeiro e perverso ato de vingança.
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