Os seus olhos perdiam-se longe naquele breve momento em que o mar tocava o céu de forma rigorosa e profunda, como se aquela linha tivesse sido desenhada com um bisturi. Imaginava aquele horizonte como um sumidouro de coisas frágeis e inteiramente suas. Coisas que não voltariam jamais.
Ganhara-lhe raiva.
Ainda enxergava, na memória da retina, aquele barco negro que partira havia tempo. Cinco meses ou três segundos, sete dias, onze anos. Não sabia precisar. Havia pouco espaço para rigores no tempo do coração. Mas que coração? Já não o tinha. Fora embora, batendo de leve, quase frio, acolhido nas paredes quentes daquele outro peito com cheiro de sal. Fora nele que se perdera, naquelas noites proibidas. Lembrar-se delas salgava-lhe a ferida da falta. Lembrar doía.
Então, tudo já era um talvez-nada.
Passou a ser uma criatura sem lugar no tempo, apenas ocupando um pequeno espaço daquela praia, habitante do silêncio da maresia, grão de areia. Dissecava cada ponto, cada vulto, cada profecia de regresso que ameaçava ser vista no horizonte, eternamente calado. Sentia-se um corpo de sal que se dissolvia lentamente, desmoronando a partir daquele pedaço de si que lhe faltava, um vazio que rugia quando a noite era só silêncio.
E a memória de pretéritos lá ficara, no cais daquele tempo vadio.
O ‘agora’ – sua prisão – era apenas poeira salgada, metodicamente colocada sobre sua carne-viva. Fora esfolada da sua melhor parte, da pele que lhe dava significado quando contra a sua, que lhe dava uma não-dor. Aquele barco negro levara tudo para o sumidouro do mundo. A parte que ficara era tão insuficiente que não poderia existir, porque não era nada. Um resto mal nutrido que apenas se alimentava do sal dos olhos. Não tinha chances, bem sabia. Jamais – jamais – suportaria o peso daquele vazio infinito, que se equilibrava em uma palavra tão tímida, um tipo de morte quase inocente, mas que só o seu não-coração conseguiria decifrar...
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Seu comentário é muito bem vindo! :)